Violência Doméstica e Direito de Família
A escalada de crimes contra a mulher no mundo inteiro traça um panorama assustador e coloca em foco a busca de medidas que visem punir infratores, bem como evitar a ocorrência destes reprováveis delitos, especialmente quando cometidos dentro do ambiente familiar. Contudo, há que ter-se cautela nos julgamentos destes casos, não só para encontrar a proteção adequada da mulher em cada caso, mas também para reconhecer que os conflitos ocorridos no ambiente familiar são permeados pelos sentimentos humanos (amor, ódio, ciúme etc.), o que pode levar uma frustração no relacionamento a ser utilizada por uma das partes como arma para atingir o outro, trazendo enormes prejuízos a todos os membros da família.
A violência contra a mulher é verdadeiro absurdo e, ao contrário do que acreditam alguns, mesmo em países ditos de “primeiro mundo” se faz presente. Os dados coletados pela Kering Foundation[1] nos dão conta de que uma entre três mulheres sofrem, ou vão sofrer, algum tipo de violência sexual ao longo de suas vidas. Uma em cada cinco jovens sofrem algum tipo de violência sexual em campus estudantil nos EUA. A cada dia, 6.000 meninas e mulheres sofrem mutilação genital no mundo, inclusive na Europa. Na França, somente em 2012, 148 mulheres morreram decorrentes de agressões de seus parceiros. Uma em cada 4 garotas dos EUA sofrem abuso sexual antes de completarem 16 anos.
No Brasil não é diferente. Conforme dados do Ministério de Direitos Humanos[2], apenas de janeiro a julho de 2018 ocorreram, dentre outros crimes, 2.828 casos de cárcere privado, 994 homicídios, 37.396 casos de violência física, 3.710 de violência moral, 1.580 de violência patrimonial, 26.527 de violência psicológica e 6.471 casos de violência sexual.
Em que pesem estes alarmantes números, no mundo, em média, apenas 8% das mulheres agredidas relatam terem sofrido algum tipo de violência doméstica.
Dentro deste panorama desolador é importante o esforço, não só dos governantes, mas também de toda a sociedade para que tais crimes sejam primeiramente evitados e, quando não for possível, devidamente punidos.
Há que se tomar providências preventivas, até mesmo fora do âmbito do Direito Penal, objetivando coibir a prática da violência contra a mulher antes mesmo que ela aconteça.
Com este intuito, no Brasil, promulgou-se a Lei nº 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da Penha. Seu apelido é uma homenagem à brasileira de mesmo nome, que tendo sofrido abusos domésticos em razão dos quais acabou paraplégica, lutou para que seu agressor viesse a ser condenado.
Esta lei, embora sofra grandes críticas por parte de alguns operadores do Direito, busca regulamentar o uso de mecanismos eficientes de cunho penal e também cível, para evitar que a violência contra a mulher seja levada a efeito.
Importante destacar que a Lei Maria da Penha busca a proteção da mulher contra todo ato de violência cometido em seu ambiente familiar, não importando quem seja o agressor. Ao contrário do que muitos pensam, não é só o marido ou o companheiro o responsável pelas agressões, podendo ser responsabilizada toda pessoa que conviva com a mulher, inclusive em caráter esporádico, independentemente do gênero ou opção sexual.
Para as situações onde a mulher encontra-se em uma condição de patente vulnerabilidade, estão previstos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, que podem ser utilizados isolada ou cumulativamente. Dentre elas, citamos: suspensão da posse ou restrição do porte de armas do agressor, afastamento do lar conjugal e dos locais de convivência das vítimas, proibição de aproximação das vítimas e de contatos com as mesmas, restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, e, a prestação de alimentos[3].
Valer-se de medidas protetivas, em muitos casos, é o único meio de possibilitar às mulheres exercerem a sua liberdade, protegendo a sua dignidade. Por outro lado, os Tribunais têm recebido vários casos onde a proteção da Lei Maria da Penha foi buscada de forma completamente indevida.
Algumas vezes, mulheres que não se conformam com o fim do relacionamento, estão magoadas com alguma traição ou por motivos de ordem subjetiva diversa, acabam por apresentar falsas denúncias como medida de revanchismo, buscando e obtendo ordem judicial de proibição do “agressor” de aproximar-se a uma determinada distância da “vítima” e, pior, de seus próprios filhos.
Nestes casos, além do enorme risco de se perder credibilidade nas denúncias, existe a grave violação dos direitos dos menores de terem contato com seu pai e, não é demais lembrar, a Constituição Federal estabelece que os direitos do menor devem ser defendidos com absoluta prioridade.
Na intenção de compatibilizar as regras para proteção da mulher e da família, a Lei Maria da Penha fez previsões que vem sendo criticadas pelos operadores do Direito, como, por exemplo, estabelecer medidas de caráter penal e outras de caráter cível. A ideia não é vista com bons olhos, já que estes ramos do Direito possuem características e regras bastante diferentes, o que provoca bastante confusão.
Estabelece-se, por exemplo, a possiblidade de criação de Juizados de Violência Doméstica contra a Mulher, com competência mista (cível e criminal). Na ausência de tais Juizados, os procedimentos legais relativos ao assunto têm tramitado, em geral, nas varas criminais, ainda que, em muitos casos, seja necessária a aplicação apenas das medidas de caráter civil. A controvertida previsão leva às partes, muitas vezes, a se confrontarem numa delegacia, defronte o Juizado, numa vara Criminal (a depender do tipo de agressão) e ainda numa vara de Família, para resolver questões relativas ao término da união do casal e outras que repercutem nos filhos.
Veja-se que não é difícil de imaginar a possibilidade de decisões conflitantes entre estes diferentes Juízos, já que os processos tramitam em separado.
Causa ainda bastante confusão, a falta de uma regulamentação clara e detalhada relativa ao procedimento a ser adotado para aplicação das medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Penha, o que deixa a comunidade insegura, diante da adoção de um procedimento diferente por cada Julgador.
Os conflitos não podem ficar pendentes de solução, especialmente considerando que atualmente, o descumprimento de uma medida protetiva (mesmo de caráter civil) representa cometimento de crime, podendo levar à outras repercussões mais graves no Direito Penal.
O fato é que não restam dúvidas a respeito da necessidade imperativa de proteger a mulher contra a violência doméstica, mas, por outro lado, a cautela nos julgamentos é imprescindível, pois existem previsões próprias, decorrentes também da Constituição Federal, que buscam proteger a família como um todo, além dos menores eventualmente envolvidos.
Conclui-se, portanto, que as medidas restritivas decorrentes da aplicação das disposições da Lei Maria da Penha são valiosos instrumentos aptos a aparelhar a defesa da mulher, mas, por outro lado, a cautela e conhecimento do operador do Direito são imprescindíveis, para buscar a compatibilização de tais regras àquelas normas próprias do Direito de Família, viabilizando também a efetivação da tutela das relações jurídicas familiares, em especial quando houverem filhos menores envolvidos.
[1] Disponível em http://www.keringfoundation.org/, acessado em 21/11/18, às 16:23 min..
[2] Disponível em http://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/agosto/ligue-180-recebe-e-encaminha-denuncias-de-violencia-contra-as-mulheres, acessado em 21/12/18, às 17: 02 min..
[3] Art. 22, Lei nº 11.340/2006